Registro processo de criação — Matuto Trovador
Em 2022, quando estávamos em processo de criação do
espetáculo "Mâney", Marcus Mota e Flávio Café vieram com a seguinte
provocação: "tragam cenas sobre grana, ganância e poder". Foi a
primeira edição do TEAC: Huguianas, e esse foi uma das minhas primeiras
experiências com teatro na vida. Até então, eu tinha feito 2 oficinas gratuitas
em 2022, e apresentado uma peça dirigida pelo Ander, que foi quem me arrastou
para o TEAC.
Eu
não tinha conseguido preparar cena nenhuma sobre o tema, limitado pela minha
inexperiência com o teatro. Foi quando o Café me sugeriu musicar um dos textos
que o Marcus escreveu para nossa peça. O Café até me indicou qual texto seria.
Marcus deu a liberdade criativa para nós, atuantes, mudarmos o texto. Com o
aval do dramaturgo, fiz uma série de alterações no texto para que ele virasse
uma música, alterando, principalmente, a métrica das sílabas poéticas, para que
elas encaixassem em um único pulso.
Acontece,
que em 2025, quando chega o texto do Matuto Trovador, a única alteração que o
dramaturgo fez foi me enviar ainda mais texto, com aquela mesma proposta
antiga. Então, como em 2025 eu tenho mais 3 anos de experiências acumuladas, eu
não poderia seguir a mesma linha de alterar o texto inteiro para encaixá-lo em
uma única música. Decidi estudar e me debruçar sobre o texto, entender o que
ele queria me dizer. E a primeira coisa que percebi foi justamente o meu
"erro" em relação a proposta do texto: se as sílabas poéticas não
seguem uma métrica simétrica, se as sílabas poéticas quebram o ritmo da
leitura, se as sílabas poéticas mudam o pulso, então a musicalidade do texto
também muda.
Esse
texto é tão complexo, que ele não muda só a sílaba poética e a métrica, mas, a
cada mudança de métrica, há uma mudança sutil de raciocínio. É como se mudassem
os personagens. As várias pessoas que compõem o mundo do boi. E para cada uma,
há uma musicalidade diferente. Dentre a musicalidade do sertanejo, existe uma
gama muito grande de estilos. Então decidi fazer uma pesquisa musical sobre o
sertanejo, a cultura caipira, matuta, camponesa, para entender as diferentes
vozes e agentes deste universo.
É importante ressaltar que em todas as vezes que apareceu
“churrascada”, eu troquei por “vaquejada”, porque mantém a mesma quantidade de sílabas
poéticas, e a palavra da indústria cultural sertaneja da moda é vaquejada. Já
foi rodeio e a própria churrascada também se faz entendida, mas vaquejada é a
palavra mais adequada para a ambientação da obra.
Do processo de
criação corporal
Desde
2023, sempre tive dificuldade de encontrar uma corporeidade para Wilson
Silveirinha. No processo atual me perguntei: como anda Wilson Silveirinha, como
ele fala, como ele pensa, quantos anos ele tem?
Wilson
Silveirinha tem 42 anos. Ele pensa em carne, dinheiro e mulher. Fala alto: voz
cheia e ressonante. Seus ombros, são arqueados para cima, com o peitoral
aberto. Galo de briga. Suas pernas abertas pouco mais da distância dos ombros,
além dos pés pra fora. Sua postura é dominante.
Wilson
Silveirinha tem cabeças de gado em milhões e é um aristocrata. Filho
abastado de uma elite agrária dominante no país. Mas ao mesmo tempo, não tem
nada no texto que diz que Wilson Silveirinha não pode ser mais um Silveirinha
qualquer. Wilson Silveirinha é um arquétipo. Todas as possibilidades ao mesmo
tempo. A dualidade.
"Ah
boi, meu amado boizinho
tua pele de veludo, meu sofá;
teus ossos pontudos, minha sopa,
teu rabo cheio de moscas..."
Ao
mesmo tempo que essa fala pode ser de uma pessoa humilde numa agricultura
familiar num passado não tão distante, tocando suas 4 ou 5 cabeças de gado e
cantando uma moda de viola no interior paulista, mineiro ou goiano, de certo,
interiorano, agradecendo a Deus por esse gado ser seu sustento e de sua
família, sua bela esposa e seus lindos filhos, que poderiam ser abandonados,
caso ele abandonasse sua esposa. Porém, ele como um valoroso homem de bem,
temente a Deus, sabe o valor de agradecer por amar uma bela mulher e ter com
ela lindos filhos.
Essa
fala também pode ser interpretada de outra maneira, como um cara sem
escrúpulos, machão, que toma as coisas pela força, pela marcado pela violência
e que te diz: tua pele é minha, meu sofá. Eu me deito quando quiser nela. Você
é minha propriedade. Teus ossos pontudos, minha sopa. Vou te comer do jeito que
eu quiser, até roer os ossos. E o teu rabo cheio de moscas, aí eu nem digo o
que vou fazer com ele. Porque logo em seguida, ele complementa: "Eu tenho
uma faca afiada, com serras".
O nome da
cena, Matuto Trovador, é o que dá esse caráter arquetípico do Wilson
Silveirinha. O nome de Wilson Silveirinha só surgiu porque o Rei dos Morangos precisa
eleger inimigos e depor alguém para se tornar rei. Um dia, depois de Sudré vir
com o nome Wilson Silveirinha em sua cena, em uma passagem, improvisei versos
sobre eu ser o Wilson Silveirinha, e assim ficou. Inclusive, depois,
criamos até mesmo uma rapsódia da guerra pelas terras do sofá, travada entre
Wilson Silveirinha e Rei dos Morangos. Resumindo: Wilson Silveirinha é só um
nome qualquer para a dramaturgia. O que importa para a construção do texto é:
ele é matuto, ou seja, uma pessoa que vive no mato. Um camponês, um sertanejo,
um caipira. E também é trovador, ou seja, UM POETA QUE COMPÕE E
INTERPRETA SUAS PRÓPRIAS CANTIGAS (EU TE AMO MARCUS MOTA!). O matuto
observa a si e o mundo, escreve poesias e canta suas canções.
A
corporeidade trovadora eu já executo com domínio. Porém, minha dificuldade
foi de conseguir achar a corporeidade matuta. Então mesclar e criar uma nova
corporeidade é mais fácil. Mas primeiro é preciso dominar a corporeidade
matuta, observando e copiando-a. Assumindo essa corporeidade de matuto, então
nada mais justo que começar tocando minha viola montado em meu cavalo, tocando
a boiada, vendo o sol nascer na imensidão do horizonte. Semblante sereno, com a
face beijada pelo frio das primícias do dia, cantando para esquentar.
Admirando. Contemplando. Enquanto caminha pela vastidão da estrada. Enquanto
desbrava os limites das fronteiras entre a civilização e o selvagem. Sou Serjão
Berranteiro, mais conhecido como matador de onça. Aqui tem coragi. Ser um
trovador exige o lirismo suficiente para apreciar o tempo presente e contemplar
as personagens.
Perceber
a estética e a poética do mato e degustar cada palavra, carregada de intenção.
Dilatar. Expandir. Crescer. Nossa peça não é realista. Partir do corpo para a
mente. E depois, da mente para o corpo. E assim, entender que a mente é o corpo
e é a alma. A alma é o corpo e é a mente. O corpo é a mente e é a alma. Faz
parte de um todo. Cada fio, a sua palha, cada palha o seu caminho. Compõem a
carapaça urdida de um chapéu. Além disso, expurgar tudo o que desprezo em
Wilson Silveirinha em mim. Aproveitar este momento para ser a expressão máxima
da vibração dessa energia em meu corpo e depois exorcizá-la da minha vida na
cena do Wandergay.
O
que eu amo dessa peça é que o elenco e a direção nunca me pedem menos. Me pedem
refino. Me pedem controle. Me pedem técnica. E isso é o absoluto oposto de
menos. Refino, controle e técnica são mais de mim. Na quarta feira do dia
21/05/25, conversei com a Sudré sobre a compreensão de que não é menos. É condensado.
E essa palavra faz toda diferença. Por exemplo: eu duvido a quantidade de
adeptos de um produto chamado leite menor. É leite condensado. É o mesmo leite,
mas com outras características. Condensar a energia, concentrar em um espaço
menor, dosar e entender dos fluxos não é fazer menor. Não é fazer menos. Não é
fazer pouco. Menor no português pode significar inferior. É uma palavra que
carrega consigo essa energia, mesmo que não seja esse seu significado no
contexto. Já condensado indica abundância, espesso, cheio, consistente, denso.
Menor indica o apequenamento de algo grande. Condensado indica um recipiente
cheio. Meu eu artista quer viver sempre com seu receptáculo preenchido. É
possível refinar o uso da energia. Usar uma capacidade menor não entendo como
vantagem possuir um receptáculo grande. O elenco de Mâney e sua direção me
inspiram em direção a preencher esse recipiente, e também o ambiente. Condensar
não é diminuir. É preencher.
Preencher
o movimento de significado. Essa é uma linha de pesquisa muito interessante, e
que, sinceramente, percebo que tenho dificuldades. Mas sei que é possível
treinar. Porque para preencher o movimento de significado é possível carregar
intenção. Mas não só! Deixar que o fluxo do movimento brinque com os significados
me parece outra pesquisa interessantíssima. É magia pura: brincar com o fluxo dos
movimentos, das intenções e dos acontecimentos internos e externos. Brincar com
o fluxo das relações.
Do processo de
composição musical
A
maioria das composições dessa cena nasceram a partir de músicas já existentes.
Primeiramente, compus uma canção em 2023. Agora, em 2025, ao perceber a riqueza
musical presente no texto, me debrucei na abundância do cenário musical
brasileiro. As novas composições nasceram a partir de uma alteração melódica ou
harmônica (raramente mudei melodia E harmonia), as quais eu busco uma modular o
registro vocal para que soe semelhante aos artistas das músicas que inspiraram
as criações da peça. As perguntas que motivaram essa pesquisa foram "como
fazer um hit sertanejo?"; "como fazer uma música sertaneja
genérica?"; "quais são os diferentes estilos do gênero
sertanejo?"; “Qual a relação da música com a estética do espetáculo?”;
CANÇÃO DO BOIZINHO
A primeira
música que surgiu foi a Canção do Boizinho. Em termos
musicais, o que eu havia apresentado inicialmente em 2023 foi uma cena inteira
inspirada na música A Morte do Vaqueiro, de Luiz Gonzaga. Em
comparação com a música do Luiz Gonzaga, na versão de 2023 existe uma mudança
melódica e harmônica, mas o alguns intervalos se mantém o mesmo.
Por
exemplo, a primeira frase da música de Luiz Gonzaga é o icônico "Ê! Gado,
oi!", que fora substituído por "Ah boi!". A primeira nota da
sílaba "Ê" e da sílaba "Ah" são iguais, e a última nota da
sílaba "Oi" também. Porém, o caminho que se faz entre a primeira e a
última frase são diferentes. enquanto a A música do Gonzaga na versão em
estúdio apresenta uma repetição dessa célula "Ê! Gado, oi!" ao
final de cada estrofe. Então decidi acrescentar uma repetição que aparece no
texto do Marcus Mota, que é "E o teu rabo cheio de moscas". Na versão
de 2023, eu foquei muito nessa repetição para a criação dessa musicalidade.
Outra
questão sobre a Canção do Boizinho foi a forma da música. Em
2023 a música estava estruturada em um prelúdio (Ah, boi!), parte A, que se
repetia com uma alteração na letra, parte B que era o texto falado, e a parte C
que foi uma adição no texto do seguinte bordão do personagem Woody de Toy
Story: "tem uma cobra na minha bota" e terminava com a repetição do
prelúdio, a qual eu vou chamar de coda. A harmonia da música se manteve por
toda a canção se repetindo uma batida voltada para o xote nos acordes de Em e
A7. Portanto, a estrutura da Canção do Boizinho de 2023 era a seguinte:
PRELÚDIO A A B C CODA.
Já em
2025, percebendo essa multiplicidade na musicalidade do espetáculo, percebi que
não era vantajoso mudar muitas palavras e até os sentidos do texto em favor da
manutenção de uma música com uma estrutura enorme. Primeiramente, as condições
técnicas me levaram a mudar a batida da música para o dedilhado. Em 2023, o
violão não possuía amplificação, então para que a plateia escutasse, era
necessário que a fonte sonora (no caso, o violão) tivesse uma emissão intensa
para que o público pudesse ouvir o que estava sendo tocado. Além disso, em
2025, minha habilidade técnica como violonista está mais refinada, o que
motivou ainda mais trocar a batida pelo dedilhado nessa canção,
especificamente. Essa transformação me conduziu a uma série de outras alterações
no arranjo da música.
Por
exemplo, ao invés de usar a frase "Ah, boi!" como um prelúdio para
anunciar o início da música, preparei uma introdução para essa música, onde
"Ah, boi!" marca o final da introdução. Além disso, a canção
do boizinho foi reduzida significativamente para uma única estrofe.
Ela se transformou em uma homenagem ao rei do baião. Também houve uma alteração
melódica e harmônica da versão de 2023 para a atual, que deixa a canção
do boizinho ainda mais semelhante a canção a morte do vaqueiro.
Decidi trazer essa proximidade ainda maior neste primeiro momento para trazer a
homenagem ao Luiz Gonzaga e evocar e reverenciar a beleza e a riqueza da
cultura brasileira que aborda essa vivência sertaneja dos trabalhadores rurais,
e para marcar a diferença entre o povo da roça e o que se consolidou como a
indústria da cultura e da música sertaneja, fomentada pelo agronegócio.
VIOLA DO SOL
NASCENTE
Na busca de
uma introdução para a canção do boizinho, decidi seguir a linha de mostrar a
beleza que há na cultura do sertão, para diferenciar, musicalmente, o que é a
cultura do sertão e a indústria sertaneja. Então, comecei a explorar uma musicalidade
no violão que fosse para as modas de viola. Certo momento, durante o estudo,
surgiu uma repetição que me trazia uma imagem mental do nascer do sol, toda vez
que eu tocava. Enquanto tocava, visualizava o galo anunciando a manhã que vem.
Então a alvorada começa a pintar o céu, clareando os tons de azul escuro. Então
os primeiros raios de sol começam a romper o horizonte. A roça começa a se
agitar, o café já está passado e a vida começa a acontecer. No momento que o
sol começa a surgir no horizonte, as pessoas passam a se locomoverem da roça
para a lavora, e quando o sol se ergue imponente, um novo dia já começou,
afirmando as tonalidade maior do astro rei.
Porém, esse
estudo foi feito na tonalidade de A, mas a música canção do boizinho está
em Em, e o relativo maior de Em é G. Não seria tão simples alterar a tonalidade
dessa composição. Então a solução me veio como benção: o início do trabalho
duro da lavoura, ou de tocar a boiada, é em tonalidade menor. Há uma modulação,
utilizando a sonoridade dos harmônicos do violão.
Depois
das primeiras passagens da cena do boizinho, e de ter estruturado a cena, senti
falta de uma fala inicial antes de começar a tocar a moda de viola. Então,
depois de ter composto todas as outras músicas, escrevi uma letra para essa
parte, inspirado em Tião Carreiro e Pardinho. Originalmente, a letra mencionava
2 grandes sucessos da dupla, como O Rei do Gado e Boi Soberano. Porém, após
conversar com o diretor Flávio Café, foi solicitado que eu diminuísse o tamanho
das falas e das músicas, para manter o ritmo do espetáculo. Foi nesse momento
que reestruturei e firmei o novo texto da cena Matuto Trovador, com indicação
para todas as falas e músicas. Nesse processo doloroso de seleção do material,
abri mão de referenciar, na peça, a música Boi Soberano, mas não poderia deixar
de mencionar e registrar este processo de criação. As partes em vermelho foram retiradas
da peça.
Toco
moda de viola
e também toco a boiada
Sou Wilson Silveirinha
Sou o Rei da Vaquejada!
Pra
cidade eu sou peão
Mas pras bandas do sertão
Não tem boi que eu não laço
Sou vaqueiro destemido
conhecido O Rei do Gado
Meu cavalo é temido
E o meu gado é indomável
O meu boi é soberano
ele é incontestável
Vou contar uma história
Desse boi descontrolado
de um tempo esquecido
Lá pros lados do cerrado
BOIZINHO DE
ASAS
No segundo
verso do texto, que começa com "ah, boi, meu boizinho de asas,"
decidi mudar a musicalidade do texto. Então, apesar dessa parte não ter sido
embasada em uma harmonia com o violão, ela possui uma linha melódica inspirada
na musicalidade da música Béradêro, do Chico César, que evoca um cancioneiro
popular repentista, sem acesso a instrumentos harmônicos, que possui uma
melodia que surge muito a partir da rítmica.
EU TENHO UMA FACA
O verso
seguinte do texto já começa a sair desse lugar de encantamento e da beleza do
mundo rural, e começa a ir para uma ruralidade mais industrializada e
modernizada, marcada pelo uso de máquinas nos campos, êxodo rural, inchaço nas
cidades e uma nostalgia de um passado, talvez uma infância, na roça, buscando
reafirmar essa identidade. Aqui me exigiu uma pesquisa sonora e a escolha foi
pela sonoridade de Bruno & Marrone, uma vez que a dupla representa essa
força da grana da indústria sertaneja e do agronegócio bem estruturado na
cultura. A musicalidade do Bruno & Marrone traz muito da música Cowntry dos
Estados Unidos, com um swing muito típico do brasileiro. A poética de Bruno
& Marrone trazem a sangria e o sofrimento no amor, e a interpretação vocal
do Bruno é visceral. Possui um drive digno de rock 'n roll, mas uma nasalidade
típica do sertanejo. A voz do Bruno é potente, com uma grande massa de ar que
ressoa por toda a laringe e deságua no palato mole, região de maior
ressonância.
O critério
que utilizei para escolher as duplas e artistas que seriam a representação do
agronegócio, foram os artistas que apoiaram o Bolsonaro publicamente nas
eleições de 2022. A escolha de Bruno & Marrone foi baseada na necessidade de
ter essa imagem do homem bruto, forte, o machão, que fala alto, ocupa espaço e
que manda em tudo, autoritário, machista, de barriga grande e voz ressoante,
que anda de camisa social aberta, um relógio Rolex de ouro no pulso, uma bota
com espora e chapéu de couro. Escolhi alguém que seria a cara de Goiânia,
capital do Goiás e que é um polo econômico que representa a interiorização do
Brasil e uma terra ainda colonial, que ainda pertence a coronéis
latifundiários. A voz estrondosa de Bruno e o recurso de usar tensões na
harmonia para demonstrar as tensões de sofrer por amor fez com que a frase
"Eu tenho uma faca afiada, com serras" encaixasse perfeitamente nessa
musicalidade que estive buscando.
VAMOS PROVAR DESSA CARNE
No início desse processo de criação em 2025, em muitas passagens, tentei
recuperar o que já tinha do processo anterior, de 2022/23, para não partir do
nada. Recuperando o que já havia de criação, e nessa parte do texto, o
trovador, ainda executando uma batida no violão, recitava o texto:
"Vamos
provar dessa carne, boi de merda,
quantos bifes, uma festa, tudo pra panela.
E mexe essa colher, e balança essas ancas,
engole o caldo que derrete tanta gordura.
Enquanto
houver a merda desse boi,
enquanto a gente quiser mais o que a gente não tem
enquanto o fogo consumir as carnes e a colher girar
não vai haver sossego, não vai haver sono, não vai haver descanso."
Naqueles
tempos, eu era um ator completamente inexperiente. Então, recitei a poesia
colocando um drive na voz pra indicar que era alguém perigoso e que se impunha
pela força. Além disso, também fiz alterações no texto para caber na métrica de
uma música. Dessa vez, porém, me sinto um artista muito mais completo e um ator
mais experiente. Então fui buscar, no meu trabalho vocal, outro lugar de
colocar esse texto.
Como
nesse novo processo, eu me libertei da necessidade de estar sempre tocando o
violão, então, percebi que há partes no texto que, ao invés de serem
exercitadas uma melodia ou uma harmonia, o que se trabalha é o ritmo. E nessa
parte do texto, a rítmica é muito interessante. O primeiro e o terceiro versos
da estrofe "vamos provar dessa carne", possuem 11 sílabas poéticas.
Já o segundo e o quarto possuem 13 sílabas. Porém, logo na estrofe de baixo:
"enquanto houver a merda desse boi", as sílabas poéticas mudam. No
primeiro e no terceiro versos, são 10 sílabas, já no segundo e no quarto versos
são 14 sílabas. Manter uma melodia ficaria estranho, justamente por mudar a
quantidade de sílabas. Consequentemente, o ritmo da fala. Então, a solução foi
ir para a fala, mas não a recitação.
Para
falar o texto, inicialmente, escolhi trazer na intenção, a fala de um
aristocrata, de uma elite, uma classe dominante que detém as terras e riquezas
do Brasil, a chamada "alta sociedade". Pra trazer essa intenção,
atrelei o sentimento do nojo, a partir da fala "vamos provar DESSA CARNE,
boi de merda". Em seguida, no trecho: "E mexe essa colher, e balança
essas ancas, engole o caldo que derrete tanta gordura", modulei minha voz
para ela ficar parecida com a da Valesca Popozuda, simplesmente porque é uma
frase que eu imagino saindo da boca dela (talvez não com esse refinamento no
vocabulário), mas também porque a voz dela é um símbolo de sensualidade e
sexualidade que rompeu barreiras de uma classe trabalhadora. Hoje, com uma
maior permeabilidade do funk no tecido social, Valesca Popozuda tem uma
inserção em lugares inimagináveis em 2005, por exemplo.
Porém,
logo depois da primeira passagem, Ander e Sudré vieram conversar comigo,
alegando que o lugar pra soltar a franga era na cena do Wandergay, então o
nojinho da personagem Wilson Silveirinha não é nesse lugar da elite brasileira
paulistana, a Manhattan brasileira, onde tudo é meio blasé. O nojo do Wilson
Silveirinha, assim como ele, é um lugar rústico. O homem bruto não sente nojo.
Ele causa nojo. O homem bruto não tem nojo. Ele É o nojo.
Nos
ensaios seguintes, abandonei a tentativa de trazer um cidadão da alta classe
que consome o boi e que legitima a cultura do boi, e assumi que o Wilson
Silveirinha é essa figura desprezível e que causa nojo em quem o vê.
Até a quinta feira do dia 22/05/11, não havia percebido a
preciosidade que é Serjão Berranteiro. Até então, eu estava seguindo nesse
Bruno & Marrone, mas insatisfeito. Procurei também fazer um Henrique e
Juliano que vai pra essa bebedeira, depois é a choradeira da sofrência. Mas não
curti. Sequer levei aos ensaios. Mas nesse dia, encontrei uma pérola de mâney.
O Wilson Berranteiro. Foi a partir de uma pesquisa, sobre o Serjão Berranteiro,
personagem da internet.
METE A FACA NO BOI,
MINHA GENTE
Sem dúvidas nenhuma, essa foi a mais divertida de fazer!
Essa música surgiu da exploração do violão nas batidas dos sertanejos. Explorando
uma batida de arrocha que mistura os contratempos, pausas, as vibrações das
cordas e os abafamentos. A melodia de “Mete A Faca No Boi, Minha
Gente” me veio tão naturalmente. Foi lindo! Então de referência vocal eu
utilizo um registro do Chitãozinho e Zézé di Camargo com trejeitos melódicos de
Gusttavo Lima e Cesar Menotti & Fabiano. Lima e a dupla possuem essa característica
marcante de realizar saltos de quintas justas nas melodias. Esses saltos de
quintas são características do gênero, mas é um trejeito melódico bem marcante
nesses artistas. Já o registro vocal, vem de um agudo muito anasalado, modo de
fonação firme, com muita adução das pregas, beirando a tensão (mas com cuidado
para não machucar a voz).
Uma característica que tenho tentado trazer ao ensaiar
essa música foi de aumentar o andamento da música, o que não é algo tão
simples, devido a batida do violão. Além disso, acabei usando o texto do Marcus
como um ponto de partida para compor uma música, aproveitando dessa
religiosidade católica muito presente na cultura caipira e sertaneja para
homenagear a minha avó, que faleceu dia 24/02/2025.
Mete
a faca no boi, minha gente
Taca pedra na testa do bicho
Comam tripas até vomitar,
ao avesso essa merda de boi
O
mundo é um imenso curral
As porteiras tão arregaçadas
Pastos floridos, vermes e moedas
A vaquejada vai começar
O
sertão vai virar mar
Mar que coisinha mais linda
Meu boizão e seu rabinho
Infestado de mosquinhas
Mete
a faca no boi, minha gente
Taca pedra na testa do bicho
Comam tripas até vomitar,
ao avesso essa merda de boi
Sei
que ela está lá
Me olhando lá de cima
Rogo a Deus, Nossa Senhora
E rezai Ave Maria
Sei
que ela está lá
Me olhando lá de cima
Rogo a Deus, Nossa Senhora
E olhai por minha vozinha
Mete
a faca no boi, minha gente
Taca pedra na testa do bicho
Comam tripas até vomitar,
ao avesso essa merda de boi
Uma coisa que o Marcus Mota me disse em uma de nossas
aulas, foi que o texto não precisa, necessariamente, ser dito. Ele pode ser só
uma inspiração pra fazer um barulho. Então, cantando ele diz algo como: METE A
FACA NO BOI, MINHA GENTE! Taca pe.... na tes... do bi... com... tri... até...
ah/ Ao aves... es... mer... DE BOOOOOOOIIIII! O que é dito, não é tão
importante, mas a sonoridade do que é dito.
É preciso ressaltar a liberdade poética nos dada. Não é
sobre, necessariamente, reescrever o texto. Mas alterar as sílabas poéticas
para a fala ficar mais fluida, ou então alterar a ordem de uma estrofe ou outra
devido à fluidez da cena.
NINGUÉM VAI DORMIR NESSA
CASA
Essa canção surgiu no primeiro ensaio
depois numa primeira passagem de improviso com a Sofia, aonde fui explorando
pela primeira vez trazer diferentes vozes para o texto. O texto original do Marcus
está escrita:
Ninguém
vai dormir nessa
Hoje o papai tá com tudo
Hoje a gente vai até amanhã
nessa cantoria da grana que entra e sai
Percebi que essa parte na voz do João Gomes ficou
interessantíssima, combinou demais com a musicalidade das palavras. Mas depois
de repetir o texto algumas vezes, percebi que a musicalidade das palavras me
levava para outro lugar, e ficou assim:
Ninguém
vai dormir nessa casa
Hoje o vaqueiro tá com tudo
Pararam Pampam
É hoje que a gente vai até amanhã
Mas esses versos ficaram tão fortes e sua musicalidade
tão latentes que pediam a conclusão em um refrão. Então fui ao texto do Marcus
consultar as respostas da cena. Enquanto isso, no desenvolvimento da cena,
tivemos sensíveis alterações. Uma das primeiras, e mais impactantes, foi o papel
da Sofia como Boi. Ela traz, junto com sua exploração circense, ainda mais lirismo
para a cena. Trazendo com isso novas relações das interações entre coro e corifeu.
No primeiro ensaio, Sofia e eu fomos analisar o que entendíamos do texto. E o
que entendemos foi que primeiro, ele ambienta a cena, depois ele cria o boi,
ele mata o boi, por fim, tudo acaba em festa: churrasco. A festa do boi. Foi
por ter esse entendimento que alterei tudo o que é “churrascada” pela “vaquejada”,
que é a festa do boi de 2025. Sofia deu ideia de alterarmos a ordem das estrofes.
Dessa maneira, ficou ainda mais clara essa lógica de ambientar, criar o gado e o
gozo final. Tanto que a estrofe seguinte diz:
Ah,
meu boizinho amado,
ficou cheiroso no carvão e no vinagrete.
Tu come, caga e morre
e eu gozo embriagado de bucho cheio.
Ah,
boi, boizinho de merda,
tuas moscas – abana teu rabo!
Tuas moscas em nossa volta!
Tuas moscas, meu boizinho de ouro!
Contudo, devido a minha incompetência em não conseguir
encontrar a musicalidade presente nestas palavras, e a sensação de conclusão
que a estrofe anterior me gerava, escrevi uns versos que pegassem a ideia geral
do que é dito:
Na
vaquejada,
tem churrasco de primeira.
E a mulherada,
é farra, pinga e bebedeira!
Na
vaquejada,
meu boizinho vira ouro!
Vou me vestir do teu couro
só pra poder lhe comer!
Escrever
sobre a criação da obra é um processo muito criativo. Assim, escrevendo sobre “Hoje
Eu Vou Lá Na Vaquejada”, quis escrever mais versos. uma frase com uma sonoridade incrível e inseri
em “
HOJE EU VOU LÁ NA
VAQUEJADA
Essa foi uma das últimas músicas
compostas, derivada de uma canção mencionada anteriormente. “Hoje Eu Vou Lá Na
Vaquejada” nasceu da variação da batida de “Mete A Faca No Boi”, ao brincar com
as pausas do violão que é muito explorada, com uma batida meio country, meio pop,
não sei definir com precisão. Inspirada na melodia de Galopeira, antes do
refrão. Essa música surgiu também numa necessidade de complementar as ideias
dos dois versos finais de Marcus Mota que tirei da cena. É a festa do boi. Ao
mesmo tempo que o segundo verso é só o gozo do trovador de cantar seus próprios
versos.
Hoje
eu vou lá na vaquejada
Eu
vou beber até cair
Chapéu e botina de couro
Tô com dinheiro no bolso
Hoje ninguém vai dormir
VAQUEJADA!
Hoje é festa de rodeio!
Não dá pra ficar parado!
Siga bem, caminhoneiro!
TEM UMA COBRA NA MINHA...
Aqui decidi resgatar uma canção final. O estilo dela é o funknejo,
esse sertanejo mais recente da indústria cultural sertaneja que engole tudo o
que dá dinheiro. O sertão é um imaginário coletivo de um passado agrícola e um
presente periférico, mas cada vez mais urbano. Não é tão recente quanto o
trapnejo, mas o funknejo ainda se faz presente em artistas como Nattan, e tantos
outros. Com a força das rádios e das plataformas de Streaming, a indústria
cultural do Sertanejo, patrocinada pelos barões do agronegócio, tem o sistema na
mão. Engolir outros estilos musicais não é um processo artístico para a indústria.
Mas pode ser um processo artístico para o artista. Assim como foi para mim
neste trabalho. E como inspiração vocal, parti do trabalho de Lucas Lucco. O
modo de fonação dele é caracterizado pela presença de soprosidade, por vezes,
mesclando com a fluidez. Ele canta sorrindo, num sorriso de sedução. A voz
ressoando no sorriso, e o sorriso causando uma característica importante no timbre.
A presença da sedução causa uma série de alterações na postura do artista, consequentemente,
em sua voz. Para resgatar essa música, criei alguns versos adicionais.
Eu
tenho uma cobra,
o nome dela é Anaconda
Quando ela tá com fome,
ela só come Perereca
No
final de semana,
ela brinca de esconde-esconde
A Anaconda esconde
e a Perereca come ela
Tem
uma cobra na minha
Bota, bota, bota, bota
Virou
uma bota
o boi, meu boi
virou uma bota
Tem
uma cobra na minha
Bota, bota, bota, bota
A pedido da Bárbara, fiz uma brincadeira sobre a Anaconda,
na calada da encolha, de alguma maneira não ser quem ela diz ser. Esse machão
todo é só uma figura, uma personagem. “Virou uma bota o boi, meu boi virou uma
bota” foi uma estrofe que surgiu num improviso, estudando o texto, e o
interessante que essa estrofe pega empréstimos modais do relativo maior pra
fazer uma swingada baiana, e voltar pro sertanejo, assim como vemos Leo Santana,
ícone da música baiana, lançar um álbum inteiro de música sertaneja em 2023,
chamado Sofrência ou Fuleragem? Com participações de artistas como Nattan e Léo
Santana.
Inspirações Corporais:
Serjão Berranteiro, mais conhecido como matador de onça: https://www.youtube.com/watch?v=AcekWw-swgo
Vesgo entrevista Serjão Berranteiro no Pânico na TV: https://youtu.be/2a2FcHuBvEQ?si=gM--QbA7YQvSh6o1
Serjão Berranteiro na Eliana: https://youtu.be/7akB6Xi5THU?si=0EGPKQJxILbPEOLq
Nattan, Felipe Amorim, MC
GW, MC TH: https://www.youtube.com/watch?v=AYK-4zouHaM
Bate papo Serjão Berranteiro e Eduardo Veiga: https://www.youtube.com/watch?v=Ts8VCfj3Ksw
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Inspirações Musicais:
1) Canção
do Boizinho — A Morte do Vaqueiro (Luiz Gonzaga)
https://www.youtube.com/watch?v=Asq32fs7mew
Essa versão é especial para essa criação, pois o Gonzagão faz uma
ode ao seu primo Raimundo Jacó, personagem que o inspirou a compor essa canção.
Me incentivou a indagar minha avó sobre sua infância na roça e construir um
imaginário.
2) Viola
do Sol Nascente — Rei do Gado; Boi Soberano (Tião Carreiro & Pardinho)
https://www.youtube.com/watch?v=bv3593lmltY
https://www.youtube.com/watch?v=yHtvFcckX8A
3) Boizinho
de Asas — Béradêro (Chico César)
https://www.youtube.com/watch?v=esYhFiUy3t8
4) Eu
Tenho Uma Faca — Dormi na Praça (Bruno & Marrone):
5) Vamos
Provar Dessa Carne — Serjão Berranteiro e Zé Capeta Berranteiro
https://youtu.be/Ts8VCfj3Ksw?si=aOBFc0H9aAcRcdY9
https://www.youtube.com/shorts/PW-2tof_-yQ
6) Mete
a faca no boi — Mexe Que É Bom; Faz Mais Uma Vez Comigo (Zézé di Camargo &
Luciano); Zuar e Beber (Leonardo); Balada Louca (Munhoz e Mariano); Leilão; Não
Era Eu; Como Um Anjo (Cesar Menotti & Fabiano); A Noite; Fui Fiel (Gusttavo
Lima)
https://www.youtube.com/watch?v=pUeP4YkENm8
https://www.youtube.com/watch?v=Ojx8SxbjTOk
https://www.youtube.com/watch?v=qkUNutuVjSw
https://www.youtube.com/watch?v=mfoROxLAUGM
https://www.youtube.com/watch?v=rS2FDyOKR2g&list=PLi_gnk7vOD8BnUSTHi5oVmfijtOSc1LVn
https://www.youtube.com/watch?v=UgU9BhWCEDw&list=PLi_gnk7vOD8BnUSTHi5oVmfijtOSc1LVn&index=3
https://www.youtube.com/watch?v=UnMcE9klQUA&list=PLi_gnk7vOD8BnUSTHi5oVmfijtOSc1LVn&index=6
https://www.youtube.com/watch?v=aCP-5pzJq9A
https://www.youtube.com/watch?v=nAuM26tkKZY
7) Hoje Eu Vou Lá Na
Vaquejada — Galopeira (Chitãozinho e Xororó)
https://www.youtube.com/watch?v=nPCg-fjTmWQ
https://www.youtube.com/watch?v=0tNoul6GWrM
8) Tem Uma Cobra Na Minha...
— Vai Vendo; Princesinha(Lucas Lucco) ;Galopeira
(Nattan); Cama Repetida (Leo Santana, Zé Felipe);
https://www.youtube.com/watch?v=aUCrEEcVkVw
https://www.youtube.com/watch?v=axE2cOIEHx0
https://www.youtube.com/watch?v=5gSaRyMzd1Q
Matérias que inspiraram a
escolha das referências musicais:
https://g1.globo.com/google/amp/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/10/18/quem-sao-os-sertanejos-que-encontraram-bolsonaro-em-brasilia.ghtml
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