Dramaturgia Completa (Autoria: Marcus Mota)

 Segue o texto completo da dramaturgia escrita por Marcus Mota para este processo criativo:


MANEY (2025)

 

Roteiro: Marcus Mota

A partir do processo criativo da turma de TEAC-UnB 2022-2023[1]

 

Lista de figuras

FIGURA DESPÓTICA. Figura com cores douradas, mistura de Chacrinha, Donald Trump. Entra numa cadeira giratória. E com a cadeira de rodinhas vai fazer muitas estripulias em cena.

CORO

Dupla Sexy Mâney

Casal de executivos

Matuto trovador

Wandergay

Beata

Rei dos morangos

Figura sábia

 

 

ABERTURA. Coro entra, canta a música tema, interage com a plateia e depois vai para o fundo.

 

CENA 1 (Entra a Figura do cara que manda, o dono da cidade, mal-humorada, laranja, meio milico, meio vagabundo: FIGURA DESPÓTICA. Ele entra arrastando quem vai fazer a próxima cena.

FIGURA DESPÓTICA

Ok, ok: chega de música, chega de música! Eu odeio música! Eu odeio teatro! (olha para o público) Eu odeio... Vocês sabem... (para os dois atores).  Comecem o que a gente combinou. Quero verdade! Segurança! Não estou brincando! (Empurra a dupla pro centro da cena e sai, pra onde está o coro. Fica observando tudo de braços cruzados e contando dinheiro)

 

Performance da relação entre os dois atores com dinheiro. Começa com o prazer da posse individual e depois evolui com a tortura My Money. Banda toca uma música sexy.

 

FIGURA DESPÓTICA (Interrompendo o fim da cena, batendo palmas)

Uma porcaria! Literalmente uma porcaria! Ninguém aqui sabe o que é o dinheiro, pra serve o dinheiro, como se ganha dinheiro! (imitando os dois atores, correndo na ponta dos pés) Nhenhenhé, nhenhenhê! Pelo amor de Deus.... (Olha para os músicos) Música de tensão, please? (para o coro, como em um discurso) “Estamos agora reunidos em um grande esforço nacional (gesto de contar dinheiro) para reconstruir nosso país e restaurar sua promessa para todo nosso povo. Juntos, (gesto de contar dinheiro) determinaremos o curso do nosso país e do mundo por muitos e muitos anos. Enfrentaremos desafios (gesto de contar dinheiro). Enfrentaremos dificuldades. (gesto de contar dinheiro) Mas faremos o trabalho. (Coro canta Mâney, como um Jingle: Maney, Mâ -Ney... Figura olha para o público) Por muito tempo, todos enriqueceram mas o povo ficou pagando o preço. Empregos foram embora, nossas fábricas fecharam. Enquanto eles celebravam, vocês dormiam com fome e ódio. Tudo isso muda agora, esse é o momento de vocês! (puxa o casal para a cena) Vão lá e mostrem algo forte. EU vou lutar por vocês!

 

CENA 2 (casal em luta)

(Sai um casal do coro, vestidos de terno como executivos de alto escalão. Eles giram como em um ringue de luta livre. Depois começam o diálogo. Durante o diálogo, eles tentam a cumplicidade com a plateia. Durante a cena, o casal passa de jovens executivos mais preocupados com happy hour e gastar dinheiro a algo mais agressivo. Banda toca algo mais distorcido, heavy)

 

HOMEM

Eu hoje acordei com fome.

MULHER

Fome?

HOMEM

Uma fome dessas que não acaba.

MULHER (rindo)

Sei muito bem...

HOMEM

Sabe nada. Tu nunca ...

MULHER

Vai ler um livro, ajudar alguém.

HOMEM

Mas...eu quero é mais!!!

MULHER

Mais o quê? Tu já não tem muita coisa...

HOMEM

Não sei porque converso contigo.

MULHER

O importante é que tu nunca vai saber!

HOMEM

Como assim?

MULHER

Fome! Tu não falou que tinha fome?

HOMEM

Falei, porra, falei.  Isso está me irritando.

MULHER

Fome... (risada)

HOMEM (tira o cartão)

Vou resolver isso agora.

MULHER

Que é: vai me bater, me jogar num rio?

HOMEM

É muita loucura... Eu quero é resolver meu problema.

MULHER (rindo)

Fome...

HOMEM

Hoje eu fiz uma lista do que eu quero.

Uma lista de compras.

MULHER

Conseguiu escrever?

HOMEM

Tem tanta coisa que ainda não tenho.

MULHER (tira o cartão. Começam a girar, como fera, medindo um ataque iminente)

E eu quero que você não consiga nada.

Eu quero ter o que você quer.

HOMEM

Eu sou mais forte!

MULHER

Você tem fome. Mas sou eu quem sabe escolher.

HOMEM

Eu vou devorar tudo em minha frente.

MULHER

Você não consegue nem me ver.

HOMEM

Sai! Eu tô avisando! Eu quero passar!

MULHER

Eu já fui! Já voltei! Me decora!

HOMEM (Ataca a mulher.)

Me cansei dessa conversa.

Eu preciso, eu quero, eu faço!

Tu não vai me impedir.

Eu desejo, eu pego, é meu!

E isso é bom, gostoso, é a feia febre.

MULHER (depois que conseguir virar o jogo. Ela, forte e respirando forte)

Meu coração bate firme, duro...

Minhas mãos são de pedra, ferem.

Eu consigo erguer o mundo, segurar o céu.

Ah, como é bom comer dessa carne, respirar, respirar...

Não quero descanso. Gostei, quero mais, quero!

 

Eles fazem as coreografias variadas de ataques e inversões de caça e caçador. Depois se sentam, de costas um para o outro.

 

HOMEM

Não sei o que fazer com essa fome,

todos meus desejos, essa lista sem fim.

MULHER (Olhos fechados)

Respira... Respira... Isso, conta, conta até dez, mil...

HOMEM (olhando para o cartão)

Eu tenho um cartão em minhas mãos. Um cartão!

MULHER

Calma... espera... respira devagar.

Daqui a pouco começamos tudo de novo.

 

 (Entra A FIGURA DESPÓTICA batendo palmas ironicamente. Ela incita o coro a bater palmas também. O coro bate palmas e os pés no chão. A FIGURA DESPÓTICA rege a velocidade do coro, fazendo com que o coro chegue à exaustão de bater palmas, bater os pés, pular, fazer polichinelos, gestos vocais de cansaço. Ao minguar de cansaço, o coro canta resfolegando Mâney, Mâney, Mâney... Daí a A FIGURA DESPÓTICA fala:)

 

FIGURA DESPÓTICA (para o casal)

Eu pedi algo forte, violento, e me trazem novelinha... Forte! Forte, eu disse! E vem isso aí.. Não entendi nada. Ninguém entendeu nada.  Nada! Não tem serventia: é por isso que estamos assim (casal sai envergonhado e vai para o coro, sob o olhar de desaprovação da FIGURA DESPÓTICA. Daí a FIGURA DESPÓTICA se dirige para o coro e para audiência, fazendo girar e empinar sua cadeira giratória)  Enquanto nos reunimos aqui hoje, os pilares de nossa sociedade estão quebrados, destruídos. Nosso sistema educacional ensina bobagens como respeito e educação artística. Nosso sistema de saúde tem hospitais abertos pra pessoas que comem aves, comem gatos e cãezinhos com coleiras e sapatos. (Coro desperta com admiração : Mâney!). Estamos ficando loucos e idiotas! (Coro expressa seu apoio : Mâney!!!) Mas nós não seremos conquistados! Não falharemos! O futuro é nosso! Vejo uma luz em nós, vamos amanhecer, florescer, ficar fortes! Ricos! Muito ricos! Vamos ficar em primeiro lugar! (Coro canta patrioticamente usando apenas a palavra Mâney um hino nacional. O coro se posta com gestos de mão no coração em uma parada militar. Depois disso, sai do coro um matuto, com sua canção do boizinho, como em desafio: )

 

Cena 3 boizinho

 

MATUTO TROVADOR (Ele canta sua canção interagindo com o coro. Soluções para a cena: integrantes do coro passeando de modo sexy com carrinhos de supermercado, fazendo poses para mostrar produtos, como cortes de carne, como as moças que vendem coisas caras em propagandas. Estrofes marcadas em negrito podem ser ditas por membros do coro. Banda acompanha o MATUTO TROVADOR, música de desafio.)

 

Ah boi, meu amado boizinho,

tua pele de veludo, meu sofá;

teus ossos pontudos, minha sopa,

teu rabo cheio de moscas ...

 

Ah boi, meu boizinho de asas,

um abraço de avó, gordo,

um desejo imenso de quero mais,

teu rabo cheio de moscas...

 

Eu tenho uma faca afiada, com serras,

eu tenho fome de matar, rasgar e mastigar,

eu não posso ver meu boizinho lindo,

e seu rabo cheio de moscas...

 

Vamos provar dessa carne, boi de merda,

quantos bifes, uma festa, tudo pra panela.

E mexe essa colher, e balança essas ancas,

engole o caldo que derrete tanta gordura.

 

Enquanto houver a merda desse boi,

enquanto a gente quiser mais o que a gente não tem,

enquanto o fogo consumir as carnes e a colher girar,

não vai haver sossego, não vai haver sono, não vai haver descanso.

 

Mete a faca no boi, minha gente,

taca a pedra na testa do bicho,

comam suas tripas até vomitar

virem ao avesso esse boi de merda!

 

O mundo -  o mundo é um imenso curral,

as porteiras estão arregaçadas,

o pasto florido de vermes e moedas,

a churrascada pronta pra começar!

 

Vem cá, meu boizinho lindo, cara de cão!

Eu gosto de tu, desse teu focinho que jorra ouro!

Ah, meu gado de ouro, cheiroso, todo cagado!

Ah, meus ricos animais – sacos, toletes, postas de bostas!

 

Eu gosto de tu assim, indo pro abate!

Coisa linda do papai – trambolho peludo!

Eu babo, eu babo – saliva, cuspe, suor!

Ai que gostoso... meu bolso fica duro!

 

Ninguém vai dormir nessa casa!

Hoje o papai tá com tudo!

Hoje a gente vai até amanhã

nessa cantoria da grana que entra e sai!

 

Ah meu boi, meu boizinho amado,

ficou cheiroso no carvão e no vinagrete.

Tu come, come, caga e morre

e eu gozo embriagado de bucho cheio.

 

Ah, boi, boizinho de merda,

tuas moscas -  abana teu rabo!

Tuas moscas em nossa volta!

Tuas moscas, meu boizinho de ouro!

 

(O fim da cena é abrupto, como um clímax. Todos congelam. Entra atônita a FIGURA DESPÓTICA, girando loucamente em sua cadeira de rodas, com a boca aberta falando não, não, não, mas sem dizer uma palavra. Então, ele se dirige ao coro, para dar uma lição: )

 

CENA 4. A LIÇÃO DA FIGURA DESPÓTICA

FIGURA DESPÓTICA

Tudo errado! Tudo errado! Tragam meu cartazinho (dois integrantes do coro entram com um cartaz enorme, que tem uma tabela de taxas)

Vamos voltar a ser grandes outra vez! Again! A partir de agora, pra cada desvio de conduta vai ter uma multa. Now! Precisamos arrecadar! (Coro reage reclamando em uníssono : Maney, maney...) Isso! 20%: reclamação gera taxa de 20 %. E reclamação desanimada mais 15! ( FIGURA DESPÓTICA vai recolhendo grana do Coro. Coro reage perguntando em uníssono: Maney, Maney? ) Vamos implementar um maravilhoso sistema de cobranças e taxas. Essa é a verdadeira educação: vocês erram, e eu ganho. (Coro reage rindo em uníssono : Maney, maney...) Mais 30% ! Como eu gosto disso! Nada de risadas, festas, humor, brincadeirinhas! Na minha administração tudo é sério e bem feito! (Coro reage chorando uma tragédia em uníssono : Maney, maney, maney ...) Isso, vocês vão aprendendo! Mais 15% ! Controlem suas emoções! Se acostumem ao pior! Pois só estamos começando. O caos vai nos unir, o caos vai nos libertar.

 (Coro reage fora do uníssono cada um brigando e acusando o outro agressivamente, como numa manifestação violenta que é reprimida violentamente: Maney, maney, maney maney... FIGURA DESPÓSTICA se afasta da confusão arrumando seu cabelo, seu terno, com o saco de grana no colo. Sai com beicinho e cabeça altiva, como um vencedor. Ao fica no centro da cena, olha para a plateia e ergue sua mão direita, a fecha, como um regente regendo o coro. O coro para sua briga. a FIGURA DESPÓSTICA lança um largo sorriso em direção a audiência, procurando olhar bem firme alguém da plateia, para a intimidar. Depois abre a mão erguida, e a confusão do coro volta. Ele brinca várias vezes com isso. até que fecha a mão pela última vez, o coro para assustado. A FIGURA DESPÓTICA se ergue da cadeira e no silêncio percorre com o olhar tudo a audiência, um olhar de desprezo, de desdém, de vencedor. Depois de instante começa a falar a palavra Money, bem baixinho, como em uma marcha, a mesma palavra uma atrás da outra. O coro repete o gesto da Figura despótica e repete a palavra Money, uma atrás da outra, marcando o andamento ao bater nas coxas. O coro tem uma mistura de rostos de infelizes, desgraçados, perturbados, loucos sofredores. O andamento continua o mesmo. Sobre esse fluxo sonoro da mesma palavra e do andamento estável, a FIGURA DESPÓTICA volta para sua cadeira e começa sua declaração:)

Há muito tempo venho observando vocês... Mentira! Eu apenas tenho uma ideia. Vou acrescentar algo às nossas taxas. A partir de agora estão banidas, impronunciáveis, as seguintes palavras: (quando a palavra for pronunciada o coro alterna Mâney, com a palavra pronunciada. Por exemplo Liberdade! Money!,)

 

Ativismo!     (Money!)

Comunidade!   (Money!)

Diversidade! (Money!)

Feto!   (Money!)

Identidade!  (Money!)

Gente!  (Money!)

Injustiça! (Money!)

Obsesidade!  (Money!)

Sexo!  (Money!)

Maconha!  (Money!)

Mulheres! (Money!)

Trans! (Money!)

Homens! (Money!)

Vacinas! (nesta palavra, a ação coletiva muda. o coro fica em linha e anda em direção à boca de cena. O coro repete “Vacinas” e depois “Mone”y, enquanto como num orgasmo, como que transando com a cadeira, a FIGURA DESPÓSTICA fala outras palavras, gargalhando:

 

Gênero! Saúde mental! Ciência! Mídia! Intersex! Pronomes! Sarampo! Preconceito! Pré-conceito! All-inclusive ! All inclusive! (O CORO fica em linha atrás da FIGURA DESPÓSTICA. Parado, o coro olha firme para plateia, cada um do coro estica os braçoS, braços, e bate apenas as ponta dos dedos, como umas palmas, mas apenas os dedos. FIGURA DESPÓTICA sai novamente de sua cadeira e volta-se para o público. Notar que sempre há som aqui. Houve a passagem das falas do coro para a percussão com as mãos, ritmada em andamento simples, um, dois. uma marcha. FIGURA DESPÓTICA começa a falar sua aula, ensinando a falar inglês:  Repitam comigo: All in -clu-siv... Fechem a sílaba final. (o coro erra: all inclusivi) Não, não é assim: falem direito: All in -clan-siv... alonguem esse som: zi, zi, ziv, ziiivvvviii.  E popcorn!! Cooorn! Coorn!(CORO pega o som “Coorn” e emenda em um esguicho de porco levando fugindo) ANd Ice cream! Criimm! (Coro repete criiime! Criiiime!, com de relincho de cavalo!) Muito ice Criiimmm! Má, má má (lábios pra exagerar o m mudo) Coro repete criiime! Criiiime!, com de relincho de cavalo!).  É tudo Nice, Naaaaaiici! ( Coro Naaiici, naaice, como um sirere) Repitam comigo Cooorn!  Clã, clã, Clã!  Pop coooornnn!  (Congela.Silêncio)

 

CENA 5 VANDERGAY

(Em silêncio entra meio tímido atrapalhado, para espanto de todos o Wandergay. Ele vem do coro, tropeça nos pés dos outros, deixa cair coisas, olha meio sem graça, mas com malícia, com muito desejo pra tudo, sempre sorrindo. É a estrela do show.

WANDERGAY

Com licença... desculpe... deixa eu passar... ai, coisa... ui, quanta gente... deixa eu passar. deixa...  (tropeça e empurra a Figura despótica. quase cai e se arruma.) Sai daqui, mamão passado! Liga o pisca alerta! ( Alguém leva um pedestal com microfone para ele. Ele fica rindo em cena, se arrumando, até começar seu número.

Gente, tô passada! Ninguém aguentava mais essa figura! (para a FIGURA DESPÓTICA) Morra! Morra! (Enquanto WANDERGAY faz seu número, ele se dirige com gestos e olhares para a FIGURA DESPÓTICA, que vai ser transformada durante a cena em Judas de aleluia pelo coro. Vai ficar amarrado em um poste, com um penico em baixo.)

Eu tenho muito medo de falar no microfone, ainda mais com um monte de gente me olhando, sabe.  Engraçado, pois escolhi o curso de Artes Cênicas: acredito que era a opção de ficar mais longe da minha família. Antes de tudo, queria dizer que isso não é uma performance, não é uma cena, nem mesmo um culto -  isso é um pedido de ajuda: estou me formando no curso de Artes Cênicas e estou desempregado e não quero voltar para minha cidade. Sou do interior de Goiás, de uma pequena cidade chamada... Vianópolis.  Mas gosto de chamar de Viadopolis. Daqui a pouco vocês vão entender... Viadopolis é um lugar que eu odeio do fundo do meu coração. Desculpe, mamãe... Eu não quero voltar pra lá,  pois lembro que, quando eu tinha uns 8 aninhos de idade, eu sofria bullying na escola, apanhava quase todos os dias e voltava para casa chorando. Minha mãe sempre me perguntava “por que você tá chorando, Wanderley filho?” Eu dizia que era porque eu apanhava muito, e eu tinha um apelido, e ela me perguntou qual era, e eu disse que era “Wandergay”. Ela disse que eu devia revidar, ou que a culpa era minha, pois eu devia agir e falar como homem! Sabe o que é mais curioso?  É que três das pessoas que faziam isso comigo atualmente estão mortas! Mortas!  Não que eu tenha algo a ver com isso... Se for para voltar a morar em Viadópolis, que seja quando eu for famoso, com uma estátua bem grande no meio da praça, uma estátua bem Wandergay! Minha mãe sempre disse que, se eu realmente fosse gay, iria parar no inferno. Se ela soubesse das coisas que eu já fiz, teria certeza que eu vou pro inferno.. Esses dias troquei nudes com um padre, e acho que estou até jurado de morte na minha cidade, (vai para a FIGURA DESPÓTICA), pois um tempo atrás fiquei com um homem casado e ele disse que se eu contasse para alguém ele me mataria. E o pior é que ele realmente tem coragem, ele já matou até o cachorro do vizinho. Esse é um dos motivos de eu chamar minha cidade de Viadopolis, pois eu coloco até o cara mais rústico pra montar...  E tem mais: no dia que minha mãe descobriu minha sexualidade, ela me levou no padre exorcista. E agora, nesse momento, vou mostrar como foi a sessão (Wanderley começa a tirar a túnica aos poucos. Ele aparece com roupa de padre, mas com cinta- liga e meia calça vermelhas. Ele vai junto com o coro exorcizar a FIGURA DESPÓTICA.)

Essas são as palavras que o padre me disse. “Gay, lésbica Prostituta e ladrão, vão todos para o inferno” Tá escrito na porra da Bíblia! (Ele e o coro repetem: “Gay, lésbica Prostituta e ladrão, vão todos para o inferno” como um mantra, até virar uma canção gospel cantada por todos. Ainda, Wandergay tortura a FIGURA DESPÓTICA:

 

WANDERGAY PADRE

Fala, querido: me diz teu nome!

FIGURA DESPÓTICA

Eu? Wandergay!

WANDERGAY PADRE

De novo!

FIGURA DESPÓTICA

Wandergay! Wandergay! Eu sou muito Wandergay!

WANDERGAY PADRE (parte do coro traz uma capa preta, máscara de batman e sapatos de plataforma pro WANDERGAY)

Olhe pra mim, mona! (Se montando como um super-herói) Olhem todos vocês de Viadópolis! Tranquem bem as portas e janelas de suas casas: pois eu, o Super Wandergay, estou na área! ( WANDERGAY sai carregado pelo coro.)

 

 

CENA 6. CENA DOS EXÉRCITOS

 

(Depois do caos final da cena anterior. Começa uma marcha cívico militar no tarol. Essa marcha percursiva se mantém em som baixo. O coro se organiza como uma igreja pentecostal. O coro canta:

 “Deus nos corações

uma casa grande

uma casa branca

brilhando no horizonte”. Durante a canção o coro faz suas evoluções em cena e vai ensinando todos a cantarem juntos. Depois do canto comum, a energia baixando, aí uma beata lá do coro. A cena vai se organizar na interação da BEATA com o coro, o coro respondendo à BEATA.

 

BEATA

Pois o bom é a gente estar juntos, todo mundo igual,

no mesmo passo, olhando pra frente,

com a mesma roupa e uma vontade de chutar o que vier.

 

E pisar fundo esse chão e ranger os dentes com força

e fazer aqueles movimentos com mão que significam alguma coisa

e olhar em volta e ver que há uma multidão.

 

O que leva alguém sair de sua casa e ir pra rua e marchar?

O que leva alguém vestir uniforme, botas, bottons e bandeiras ?

O que leva alguém ter tanta raiva de tudo que se move e respira?

 

É porque antes estavam sós, e não eram levados a sério.

Então se encantaram e abriram seus olhos

e passaram a ver os grandes problemas do mundo.

 

Há muito tempo as coisas estão fora de lugar

e é preciso consertar o que está errado.

tudo tem de voltar a ser o que era.

 

Um dia tudo estava perfeito, do jeito que Deus fez:

havia a pátria, a família e a liberdade.

E todos eram felizes e tinham dentes.

 

Então o sol ficou vermelho e a mídia criou as mentiras.

E Deus se arrependeu de ter criado o universo

pros índios, os miseráveis e os universitários cagarem tudo.

 

E havia muita coisa boa, muita comida, muita roupa bonita.

E as Tvs eram enormes, cheias de cores, e os carros voavam,

e a casas e as cidades eram limpas, brancas, reluzentes.

 

A falta disso tudo nos levou a uma nova humanidade,

a gente quer isso que se perdeu,

ante do cometa vermelhou entristecer Jesus e os santos.

 

Então a gente foi chegando junto, a raiva nos trouxe,

e a vontade de ter de volta as nossas coisas

e não perder mais nada, e ter mais, e continuar ganhando.

 

Então a gente está forte, venha chuva, venha sol.

E vamos fechar as ruas e engolir as chaves.

E aqui tem banheiro químico pra todo mundo.

 

E vamos tomar posse dessas terras

e fazer brotar nossos filhos e os filhos dos nossos filhos

e a vida vai ser boa pra nós, os que melhores.

 

É por isso que viemos aqui estamos juntos.

Temos o monopólio da verdade.

Somos a gente certa pra esse mundo.

 

É isso que Deus quer:

um povo, uma pele, uma mente.

Quando tudo virar um, seremos felizes.

As mesmas músicas, as mesmas conversas,

as mesmas explicações, a mesma mesmice –

tudo igual, constante, inalterável.

 

Deus não passa de uma marcha regular

que distribui tudo do mesmo modo

para aqueles que são iguais a deus.

 

E todos queremos mais, somos insaciáveis,

e não há limite, nem cercas, nem gavetas.

Nenhum corpo segura o impacto de um tiro.

 

Ah, minha gente, tudo é permitido a quem crê!

O sonho dos melhores é o melhor sonho.

Vamos tratorar, passar por cima!

 

Está acontecendo agora, vocês podem ver!

É muita felicidade, minha gente! Uma porrada de bom!

Vamos ficar bem, vamos enricar!

 

As nossas coisas vão brilhar, e ninguém vai nos roubar de novo!

Somos uma loucura doida, ridículos, violentos!

Somos uma raça ruim, egoísta, obtusa!

Somos todos indicações do que não presta.

Mas basta trocar a direção da reta,

basta mudar o modo de ver,

basta troca a letra, mudar a mente, vestir o uniforme,

que tudo muda, que vamos juntos adiante,

marchando, rumo a mundo nosso, maior, 

(CANÇÃO. CORO E BEATA CANTAM JUNTOS. E VOLTAM A CANTAR JUNTOS COM A PLATEIA.

Deus nos corações

e uma casa grande

uma casa branca,

brilhando no horizonte.

 

CENA 7 Rei dos morangos

(Entra o rei dos morangos com suas vestes de homem das cavernas e cetro. Ele entra poderoso e decidido. No caminho, chuta o boneco da Figura despótica, que está no chão, e começa sua revelação:

REI DOS MORANGOS

Meu povo querido, eu tenho uma declaração a fazer... um babado louco... Eu... vos amo! (festa) Como vocês bem sabem, todo ano nosso povo sofre um ataque bruto e violento. Sim! todos nossos desejos e anseios são deixados de lado, somente para saciar o ego e a fome... (bate com seu cajado/cetro no chão) a fome de pessoas que se julgam superiores a nós e que julgam saber tudo sobre tudo (olha para a FIGURA DESPÓTICA). Ninguém mais sabe mais que eles. Ninguém! (Gargalhada) É com o coração pesado e encharcado de pesar, que eu venho avisar que o fazendeiro Wilson Silveirinha não é quem ele dizia ser (música de suspense. Susto. coro. Clima de filme policial) Sim! E o projeto lambe-lambe batinha tropical é mentira! (reações do coro) O projeto lambe-lambe batidinha tropical soca-soca não passava de um enorme abatedouro! (bate com seu cajado/cetro no chão reações do coro) Um abatedouro para onde ele mandava nossos corpinhos e os trocava por 30 míseras moedas de prata. Mas eu prometo pra vocês (falas imperceptíveis, de alguém se afogando, borbulhando. Faz gestos de ninja com o cajado), eu prometo pra vocês que enquanto eu viver Wilson Silveirinha (cusparada pro lado), que só tem olhos quando lhe convém, que só engole nosso suco quando é doce, eu prometo que se ele ousar colocar a boca em um dos meus, vai sentir o gosto do veneno amargo do meu ódio enrijecendo os lábios e descendo pela garganta, como um fel amargo queimando seu estômago, (para o boneca da FIGURA DESPÓSTICA) para que você entenda um vez por todas que aqui sempre se colhe o que se planta!( bate com seu cajado/cetro no chão reações do coro) Salvem a dinastia dos morangos! ( Ele abre o cedro e lança purpurina. Ao fim da revelação, o coro canta “Salve o rei dos morangos” tirando o Rei dos Morangos na porrada)

 

CENA 8 Chapéu

(Vem uma FIGURA SÁBIA e fala sozinho no palco. Ele interage com a plateia. nessa hora sem som, sem coro. Ele chega como um vendedor de chapéus de praia na praia)

 

Seu moço, um chapéu de palha,

palha de coco pra sua cabeça,

esse sol que não dá trégua,

essa vida que não se aguenta.

 

As palhas foram trançadas,

cada fio, o seu caminho,

cada buraco, uma volta,

uma cova, um céu, um vazio.

 

E essa carapaça leve, bem urdida,

feita por minhas mãos feridas,

eu lhe ofereço por quase nada,

uma coisa em troca da nada.

 

Pois se juntei o que a palha espalha

e dei forma a algo que não havia,

será que por isso que é um tanto e pouco

um tanto e pouco eu não merecia?

 

Seu moço, um chapéu de palha,

seus bolsos, remexa e encontre:

não é possível que sejam sem fundo

a carteira, a palha e minha fome.

 

Aqui na praia, essa ventania

não deixa nada em paz, parado.

Tudo se move e mesmo o mar

parece furioso e cansado.

 

Eu vou de barraca em barraca

vendendo aquilo que posso e fiz,

minha pele cada vez mais grossa e escura,

areia no rosto, suor, sangue, nariz.

 

Mas o chapéu de palha brilha na imensidão branca da praia.

De cima, do céu, as cabeças giram no passeio entre as trilhas

entrelaçadas em festa de música que não se ouve,

de dança que se dança e voa além das águas do mar.

 

Ah, um belo dia se foi. (SAINDO DE CENA)

Amanhã será melhor:

voltar e tecer

um chapéu para as cabeças.

 

CENA 9 CARNAVAL FINAL

O coro anda para o meio do palco em silêncio. Para. E começa a cantar

 

E se eu tivesse tudo

 

E se um dia

eu tivesse tudo

tudo, tudo

tudo que eu queria ter

que mais eu haveria, haveria de querer?

 

FONTES PARA A PEÇA

1- VÍDEO DA APRESENTAÇÃO DE MÂNEY, 2023

https://youtu.be/O-tP-xDc5R0?si=75rC1M8PwzvPgUo5

2- DISCURSO DE POSSO DE TRUMP, JAN 2025

https://br.usembassy.gov/pt/discurso-de-posse-presidente-donald-j-trump/

3- LISTA DE PALAVRAS BANIDAS DOS DOCUMENTOS PÚBLICOS

https://pen.org/banned-words-list/

4- DISCURSO AO CONGRESSO, TRUMP, 2025.

https://www.whitehouse.gov/remarks/2025/01/the-inaugural-address/

5- IMAGEM DE JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA

https://esquerdaonline.com.br/2020/04/11/o-sabado-de-aleluia-a-carreata-dos-judas-e-a-resistencia-nas-janelas/

 

Premissas:

IDEIA É VARIAR OS ESTILOS DO CORO AO CANTAR “MÂNEY”, FAZENDO AS MUDANÇAS DAS CENAS. No lugar de ter um monte canções , varia mâney.

E TER UMA FIGURA QUE VAI FAZENDO AS MUDANÇAS DA CENA, TIRANDO O CORO, E TRAZENDO QUEM VAI FAZER A CENA NOVA

Depois tirar essa figura de foco, para dar lugar a cenas individuais, flagrantes da vida recente.

NA PRIMEIRA PARTE DA PEÇA, A FIGURA DESPÓSTICA DOMINA, EXERCENDO SUA INFLUÊNCIA AUTORITÁRIA E ABSURDA. DEPOIS DA ENTRADA DE WANDERGAY NA CENA CINCO A FIGURA DESPÓTICA PERDE SUA FORÇA. NA PRIMEIRA PARTE, A FIGURA DESPÓSTICA AGE COMO UM DIRETOR DE TEATRO AUTORITÁRIO QUE COMANDA O SHOW. NA SEGUNDA, AS PERSONAGENS SE REBELAM E ESFACELAM ESSA HEGEMONIA.



[1] Sobre o processo criativo, v. MOTA, Marcus & CAFÉ, Flávio “$MâneY$ (2023). Documentos do processo criativo”. Revista Dramaturgias n. 22,p.129-178, 2023. Link: https://periodicos.unb.br/index.php/dramaturgias/article/view/48289


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